Memória

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A gente pára e olha para o passado, enxerga as coisas, todas postas sobre a mesa, todas tortas, deixadas lá. Pegamos com as mãos ainda não trêmulas, lembrança por lembrança, espia cada uma, analisa, observa, devolve à mesa, com a quase estranheza de quando a viveu experiência. Naquele tempo doeu, rasgou, deliciou, chorou, sorveu. Agora lembranças pasteis, ex cor africanidade, ex brilhantismo de sol. São como véus de transparência opaca, no balanço câmara lenta do vento da janela aberta. A poeira lá fora ainda passeia pelo ar. Tudo parado, congelado, nessa arrumação de dança de tempo. As lembranças expostas, colocadas umas sobre as outras, são como corpos de guerra deixados no esquecimento. Batalha final sem fim.
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Zé Monjolim

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Quando criança, havia na minha cidade um homem que chamavam de Zé Monjolim. Não sei sobre a origem desse chamamento e sempre achei curioso. Até hoje na presença desse nome passa-me a imagem de um monjolo pela cabeça e junto vem à mente mais essa cena curiosa que compõe o cenário de crônicas da minha infância.

Eu ficava na janela observando, dias quentes, início das tardes. O vermelho da terra com a luz do sol misturava-se ao sorriso e dentes daqueles meninos. Eram muitos que se juntavam ao redor do Zé Monjolim: vestido de terno cinza, bem apertado, pele morena cor de cabaça, cabelos cortados baixo, todo limpo e empertigado. Trazia sempre no bolso um vidro âmbar com álcool. As crianças ao seu redor riam, riam muito, pois sempre que alguém tocava no seu braço ou qualquer outra parte do seu corpo, ele se limpava com o álcool. Minha mãe nos dizia que ele sentia nojo e que as crianças não deviam fazer aquilo. Mas aqueles meninos eram danados! Quanto mais ele se limpava e brigava, mais as crianças o tocavam... Parados na esquina da minha casa faziam essa arruaça diurna, depois iam embora. Na minha cabeça ficavam perguntas, curiosidades sobre porque ele fazia aquilo.

Desde essa época que eu passei a acreditar que o álcool limpava tudo. Já minha mãe dizia que o bom mesmo era água e sabão, pois esses só não limpavam a língua de fofoqueiros! Não imaginava que um dia iria me sentir como o Zé Monjolim. Tendo que limpar minhas mãos com álcool e ter a preocupação constante de lavá-las com a água e sabão, que continuam não limpando apenas as línguas de fofoqueiros. Que nos dias de hoje, nessa composição urbana, traduzem-se nesse jornalismo que assistimos na tv.

Porém, noutro dia fiquei sabendo que álcool não mata vírus, então me perguntei do porque estarem nos dizendo para passar esse negócio nas mãos.... ah, mas é melhor a essa altura não perguntar muito mesmo não, acabamos por descobrir coisas terríveis com toda essa curiosidade! Água e sabão parece que só leva embora. Mas matar mesmo, também não mata não. Eu acho também que o Zé Monjolim não sabia disso. Mas eu também não sei se ele preocupava-se era com vírus, penso que ele limpava outras coisas do seu corpo. Assim como eu penso que devíamos nos preocupar em matar outras doenças da sociedade, as que têm a ver com poder, com dinheiro a qualquer custo, quem sabe assim não precisaríamos nos preocupar em comprar tanto álcool gel, gel anti-séptico e o diabo a quatro!

O Zé Monjolim talvez não fosse gostar dessa forma de assepsia, fica um negócio meio grudento nas mãos, ainda mais se misturado com poeira, como das mãos dos meus alunos (risos).

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